quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Como drama pessoal levou advogado a largar carreira para criar a 1ª maconha medicinal brasileira

Após perder mãe, vítima de câncer agressivo e doloroso, Caio Abreu reúne investidores, parceiros e pesquisadores de ponta de olho em potencial de mercado e demanda reprimida de pacientes.

Produção na Bedrocan Canadá, subsidiária da Canopy, maior companhia licenciada para produção de maconha do país, que fechou acordo com firma de Abreu para atuação no Brasil (Foto: Divulgação)
Aos 35 anos, Caio Abreu tinha a vida profissional ganha: passagem por grandes escritórios de advocacia, faturamento alto na própria empresa e dois filhos pequenos crescendo com conforto ao lado da mulher em São Paulo.

Ele resolveu, contudo, largar a carreira e se reinventar no mundo dos negócios com uma missão ousada: criar a primeira indústria brasileira de medicamentos à base de maconha.

O projeto não está para brincadeira: reúne investidores, cientistas de ponta e parceiros em países que já regulamentaram a cannabis medicinal, como Canadá e Holanda.


Já possui autorização da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para importar 20 kg de matéria-prima e desenvolver o primeiro "candidato a medicamento", que ainda precisará passar por testes em humanos para uma eventual liberação comercial.

A empresa tenta avançar com cautela, já que o uso medicinal da maconha ainda dá seus primeiros passos legais no Brasil.

A empreitada de Abreu mira, naturalmente, o potencial econômico desse mercado, que já movimenta bilhões de dólares em países como EUA, Reino Unido, Israel, Canadá e França.

Só nos Estados Unidos as vendas legais de cannabis para fins médicos e recreativos somaram US$ 2,6 bilhões (R$ 8,4 bilhões) em 2014, segundo a revista britânica The Economist. 


Primeiro alerta
Foi um drama pessoal, contudo, que chamou a atenção do advogado para o potencial terapêutico da planta.

Em 2005, Sueli, mãe dele, começou a reclamar de dores na base da coluna. Passou por um sem-número de médicos até uma amiga enfermeira sugerir um proctologista, que detectou um agressivo câncer no reto.

Na mesma semana, Abreu hospedou a mãe em sua casa, em São Paulo, para assisti-la durante o tratamento duro que viria pela frente.

O câncer atingiu o útero e passou a provocar dores excruciantes - causadas pela compressão dos nervos pelo tumor -, amenizadas à base de morfina.
 
Caio Abreu com a mulher e os filhos (à esq.), e com a mãe e a irmã (à dir.): episódio de câncer na família chamou atenção de advogado sobre potencial medicinal da maconha (Foto: Arquivo pessoal)

Foi quando Sueli, uma pedagoga que ganhara a vida em agências de publicidade, quis tentar uma alternativa - sabe-se que o efeito da quimio pode ser intolerável para certas pessoas, com prejuízo ao tratamento.

Abreu se desdobrou e conseguiu maconha para a mãe - recorrendo, claro, ao mercado ilegal. O uso, diz o filho, ajudou a minimizar a dor da compressão dos nervos pelo tumor e efeitos da quimioterapia, como náuseas, vômitos e falta de apetite.

"Aquela foi a semente que me despertou para o fato de que aquilo funcionava. Hoje acredito que poucos usos da cannabis são efetivamente recreativos (dada a variedade de usos medicinais)", afirma ele, que prefere sempre citar a planta pelo nome científico.

Sueli sucumbiu ao câncer em dezembro de 2009, aos 58 anos. Desde então o filho conheceu sua atual mulher, teve dois filhos e continuou a tocar seu escritório de direito societário e mercado de capitais, que lhe rendeu uma vida confortável em um bairro nobre de São Paulo. 


Mobilização
Em 2014, o debate sobre os efeitos medicinais da maconha ganhou peso no Brasil, na mídia e na comunidade médica.

O impulso foi o documentário Ilegal, que mostrava a realidade de pacientes que precisam da maconha medicinal e enfrentavam a lentidão da burocracia estatal para importar produtos e medicamentos derivados da planta.

Um dos personagens do filme era a menina Anny, então com cinco anos e portadora de um tipo incurável de epilepsia. A criança sofria de oito a dez convulsões por dia, e o único remédio que reduzia os ataques era o CBD, componente da maconha sem efeito psicoativo (ou seja, não "dá barato").

O tema já estava no radar de Abreu, que aparece em uma das cenas mais tensas do filme, uma reunião em maio de 2014 na qual a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) adiou a reclassificação do CBD - o que acabou ocorrendo meses depois.

"Todo o processo das mães e do Ilegal fez o Brasil entender a cannabis e a epilepsia. Dada a gravidade dos problemas gerados por crises epilépticas, todo mundo apoiou a causa. Acho que não tinha ninguém contra no país, seria muito desumano esse sentimento. Acho que possibilitou o debate menos preconceituoso pela primeira vez", diz ele.

Caio Abreu (ao centro) conversa com familiares de pacientes em cena do documentário 'Ilegal': mobilização levou a mudanças regulatórias no país (Foto: Divulgação)
Mudanças na regulação
A política em relação à cannabis medicinal no Brasil começou, portanto, a mudar aos solavancos - retrato da falta de consenso sobre como separar a maconha que pode curar e aliviar sofrimento daquela associada ao vício e ao tráfico.

Em dezembro de 2014, o Conselho Federal de Medicina autorizou médicos brasileiros a prescrever o CBD, mas a liberação foi limitada: somente neurologistas e psiquiatras receberam o aval, e apenas para crianças e adolescentes com casos graves de epilepsia.

No mês seguinte, a Anvisa passou a enquadrar o CBD como substância controlada, e não mais proibida - podendo, portanto, ser adquirida com receita médica e laudo de responsabilidade assinado por médico e paciente.

O CBD já é usado com sucesso nos EUA e em países da Europa contra epilepsias de difícil tratamento. Foi a primeira vez que a Anvisa reconheceu o efeito terapêutico de uma substância derivada da cannabis - desde então, já autorizou cerca de 1,5 mil pedidos de importação de produtos com o componente.

Em março deste ano, por determinação judicial, a agência liberou a prescrição e importação de medicamentos com demais derivados da maconha, incluindo o THC (tetrahidrocanabinol), que tem efeito psicoativo. Também autorizou a prescrição de flores de cannabis in natura para uso vaporizado.

A autorização, no entanto, só veio em resposta a uma decisão judicial, e a própria agência informou que irá recorrer da determinação.

Mas todas essas mudanças ainda têm efeitos restritos para os pacientes.

Como nenhum medicamento à base de cannabis possui registro no Brasil, as famílias dependem de importações burocráticas, caras (doses podem valer de R$ 1,5 mil a R$ 15 mil) e produtos sem qualidade farmacêutica - nos EUA, por exemplo, o CBD é classificado como suplemento alimentar e não tem produção controlada como no caso dos remédios.

Oportunidade
Foi aí que Abreu, hoje com 37 anos, viu uma oportunidade. Fechou o escritório de advocacia e saiu em busca de parceiros, consultores e colaboradores para a empreitada.

"Quando comecei a pensar em trabalhar com isso, vi que não existia uma empresa fazendo extrato (de componentes da maconha) de forma farmacêutica. Não que os óleos (importados) que estejam chegando não ajudem - ainda bem que há algo para crianças tomarem -, mas é importante saber o que está usando quando você vai se tratar de qualquer coisa", afirma.

Um passo chave nesse processo foi atrair uma das principais empresas internacionais de maconha medicinal, a Canopy Growth Corp.

A Canopy é a maior firma licenciada para produção de cannabis do Canadá, país em que o consumo de maconha receitada por médicos é legal desde 2001.

Por meio da Bedrocan, subsidiária da Canopy especializada em produção para uso terapêutico, fornecerá as flores de cannabis para o desenvolvimento do primeiro remédio planejado pela empresa de Abreu, batizada Entourage Phytolab.

O primeiro objetivo da Entourage é desenvolver, testar e aprovar um extrato fitoterápico à base de maconha, com presença dos dois principais compostos: CBD (não psicotrópico) e THC (psicotrópico).

Efeito 'entourage'
O nome da empresa vem de uma aposta no chamado "efeito entourage", referência a associado, conjunto. Estudos indicam - mas não há consenso a respeito - que o efeito combinado de moléculas de CBD e THC pode ajudar a ação medicinal.

Com isso, a empresa quer utilizar a seu favor algo que a Anvisa e parte dos estudos tendem a ver como problema: o fato de ser difícil produzir um remédio "puro", apenas com determinados componentes da maconha, como CBD ou THC.

"Nós acreditamos que o uso de extratos com alto CBD e baixo THC é uma estratégia mais acertada do que o CBD puro", diz, citando estudos recentes, o diretor científico da Entourage, Fabrício Pamplona, farmacologista que estuda aplicações terapêuticas da cannabis há 15 anos.

Laboratório no Canadá da Bedrocan, empresa especializada em produção de maconha para uso terapêutico e que fechou parceria com a Entourage para produção no Brasil (Foto: Divulgação)
Por meio da assessoria de imprensa, o Conselho Federal de Medicina informou que "geralmente estudos têm que ser analisados caso a caso", levando em conta fatores como dimensão da pesquisa e qualidade da publicação científica.


Segundo o conselho, ao analisar cerca de 120 estudos para a decisão de 2014 que liberou, com limitações, a prescrição de CBD, o órgão disse que chegou a apenas cerca de dez estudos com "consistência" científica.

Próximos passos
A Entourage deverá receber as flores in natura de cannabis em outubro, e a extração dos compostos será feita usando tecnologia brasileira numa universidade pública de ponta - Abreu prefere ainda não mencionar o nome da instituição.

Espera realizar ensaios clínicos até meados de 2017 e começar a vender ao Brasil no mesmo ano.

O primeiro extrato deverá ter várias formas de apresentação, como uma específica para crianças e comprimidos para adultos. Um segundo produto deverá ser um extrato com maior concentração de THC.

Em um segundo momento, a empresa também espera ter autorização para produzir a cannabis no Brasil.

Um desafio chave no processo será o diálogo com a classe médica.

"A proposta é construir um diálogo dentro dos padrões que médicos já trabalham com quaisquer medicamentos: doses, efeitos colaterais, demonstrar todas informações técnicas para que possam trabalhar", afirma Abreu.

"Médicos não têm preconceito, o que importa é a pesquisa estruturada, até para poderem entender porque um remédio pode ir não ir bem. Médicos que tratam dor, por exemplo, têm limitação no arsenal (de tratamentos disponíveis), e cannabis é uma alternativa. Muitos médicos não veem a hora de poder prescrever", diz, confiante, o empresário.
Thiago Guimarães Da BBC

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